sexta-feira, 26 de junho de 2015

FEITIÇOS

Sabes, quando não há volta a dar,
E te revoltas em ventos, marés?
Quando o tempo tarda em chegar,
E estas já para lá do que és?
Quando não podes comer a laranja,
E engoles mais duas ou três?
E Adão, além do bem e do mal,
Morde a maçã de Eva fatal?
Quando na frieza do calabouço
Numa tristeza de carne e osso.
Aqueceste na luz fundamental?
E naquele seu êxtase Teresa,
Numa corpórea visão mental,
Teve em direto clara certeza?
Maria Clara C’Ovo.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

CITEREIA


Atração pelo escarlate.
Desejo grande de doçura.
Desse pendor nasce a arte.
A necessária ternura.

Falta-lhe tanto esse afeto.
Tão indigente de carinho.
Carente cálice repleto.
Tendência de ser sozinho.

Nesta febre de emoções.
Numa ânsia de caminho.
Em cruzadas atrações.

De libido e apetite.
Por entre Ares e Adónis.
Apolo quer Afrodite.

Maria Clara C’Ovo

segunda-feira, 1 de junho de 2015

MARIA DA FELICIDADE

I
Galgara uma vida estafada.
Derreada entre sacos e embrulhos.
Embalara num colo calejado.
Entoando baladas e murmúrios.
Na troca de festas, beijos roubados.
De amores terçados ao limite.
Em barrigas de filhos partejados.
Mimara merendas de apetite.

II
Chapinhara em molhados sorrisos.
Ensinara as letras paciente.
Ordenara caos, arrumara vidas.
Polidas num vai-vem indiferente,
Carimbadas p’lo mecânico ser.
De secções e processos arquivados.
De uma família a correr.
Contra relógios congestionados.

III
Lia crises estampadas nas gordas,
Tensões dum marido desempregado.
Enfrentava cabisbaixa as ordens.
Dum pai colérico e agastado.
Como abreviaria o tempo?
Com salário magro na panela.
Sem horas, energias, nem delongas.
Desabafos fugiam à janela.

IV
Com olhares perdidos na areia.
Da estrada estreita e grotesca.
Destinada de volta à aldeia.
Dias e noites passavam sem pressa.
Sem metais para liquidar a renda.
Tirara o marido da taberna.
Perdera a guerra e a merenda.
Voltara triste à casa materna.

V
Carimbos trocados pela enxada.
Largara as correntes e relógios.
Olhava o sol, ouvia os galos.
Tinha pão, frutas frescas e regalos.
Vizinhos de ar puro e solidários.
Cuidava da horta, da capoeira.
Ao ritmo de diversos calendários.
Vivia a terra doutra maneira.

VI
Com as trocas animava as vendas.
Em cestas decoradas pelos filhos.
Nas feiras, nos mercados e nas tendas.
Carregadas e plenas pelos trilhos.
Com malhas, rendas, tecidas fazendas.
Madeiras do José e alguns vimes.
Pelo ocaso, caminhavam juntos,
Pequenas sendas, atalhos sublimes.

VII
Ao serão abrasavam leite quente.
Bebido pelos corados petizes. 
Para os pais um trago d’aguardente.
Adormeciam quentes e felizes.

Maria da Clara C’Ovo.