quinta-feira, 30 de julho de 2015

A CORUJA

É uma sensação nascente
Um impulso molecular
Vontade de ser diferente
Enraivecer para fugir
Furar barreiras, escapar

Voar...

A alma virada do avesso
Soltar as rédeas da fúria
E grito!
Desobedeço.
Ser travesso.
Arrisco!
Desafiando a penúria, deliro na minha loucura
Entre medos, monstros, degredos
Espectros, duendes, fantasistas
Perdida em amores extemporâneos
Vou inspirando o frio ardente
Sorvo os fumos alquimistas

Cega por cabelos convulsos
Por multidões asfixiadas,
Vagueio.
Pela rua em fuga
À noite,
Embala-me o canto da coruja
E deambulando
Conto-te as minhas histórias
A vida dita e cuja
O meu enredo
Fabulando o meu sentido.
Conquisto caminhos e vitórias.

Maria Clara C’Ovo



segunda-feira, 27 de julho de 2015

CANTIGA DE AMIGO

Trocámos sorrisos de papel
Os olhos cruzaram-se nas letras
Escritas nestas linhas de mel
Transformámos sílabas em festas

Mantivemos depois frases cúmplices
Leste-me  ideias em palavras
O verbo inventou-nos multíplices
Para conversarmos entre aspas

Entendes este linguajar
Esta tão marginal oração
Arengas tristes de solidão

Nas nossas epístolas, amigo.
Entregamo-nos sem condição.
Fazemos da língua um abrigo.


Maria Clara C’Ovo

sábado, 25 de julho de 2015

CONCERTINA

À toada do realejo
Há sons e silêncios
À manivela
Libertam-se notas, acordes, festa
Da imaginação do poeta
Piropos p’ràs moças à janela
À toada do realejo
Inventam-se outras poesias
Acertam-se passadas
Libertam-se ritmos e energias
Disseste coisas estouvadas
Alguns perderam manias
À toada do realejo
Descobri o meu amigo
Senti-te em sintonia
E correspondi-me contigo
Contei-te da minha alegria
Daquilo que aprendia
Ao som duma caixa de música
Na minha aldeia
O rapaz roubava um beijo
À garota mais pudica
À toada do realejo
À manivela
As flores ganhavam cor
Espantei-me com a tua ideia
Curei-me da minha dor
De quando ele olhava para ela.
Despeguei-me dessas tristezas
Despedi-me da minha rua
Da vida crua
Pelo sopro de uma harmónica
No coreto do meu jardim
Passei a gostar mais de mim
Criei enredos, poemas
Descobri o meu amor.
Vislumbrei filosofias
Entendi as harmonias.

Maria Clara C’Ovo

quinta-feira, 23 de julho de 2015

ARLEQUIM

Ele transbordava alegria,
Distribuía risos, graças,
Espalhava sorrisos, ria
Contagiava gargalhadas

Partilhava seu bom humor,
Dividia gozo, risadas,
chalaças, alento, calor.
Era imune a desgraças?

Tamanha fonte d’energia
viveria em plenitude?
A solidão conheceria?

Numa mútua completude.
Vivia os dias risonho,
Desvendara a solitude.

Maria Clara C’Ovo

segunda-feira, 20 de julho de 2015

CABAÇA

Mãos enterradas com prazer no barro.
Gosta de o tocar, de o sentir.
De o moldar e de o extrair
De barreiras, desse local bizarro,
Atraída por aquele pó telúrico,
Dá-lhe forma, um rosto e figura,
De olhos côncavos, de queixo cúbico,
Sente vontade de o esculpir,
De lhe sentir o perfil, a finura.
De se envolver nele, de se cuidar,
De se soltar e de se deixar ir
No torno, no pino, de modelar.
Soprar-lhe pelo nariz seus segredos,
De o amolecer e inventar,
De o regar com o vapor dos dedos,
Gosta de o imaginar sem medos.
De perder o pé naquela argila.
Soterrar-se, quase perder o ar.
Asfixiada e tão esvaída,
Reencontrar o norte e girar.


Maria Clara C’Ovo.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

ALFAIATE

Gostava daquela macieza,
das cores, texturas, tons e odores,
Dos sons, jeitos, trejeitos, da beleza.
Dos sabores, névoas e das flores.

Envolta em tecidos, sedas, chitas,
No seu novo mundo de afazeres,
Por entre lagartas e mariposas,
Criava, tingia outros prazeres.

Curtida por horas de pouco sono,
Com as mãos coradas pelo cansaço,
Sentia da terra o abandono.

Mas na nostalgia gerara vida,
Cerzia belos panos à medida,
Desvelara a terra prometida.


Maria Clara C’Ovo.